terça-feira, 9 de novembro de 2010

Sob os olhos da clarividente (7)




TRANSPORTE ESPIRITUAL

A jovem senhora visitava o Vale do Amanhecer com freqüência, e, com um desembaraço que nos deixava encabulados da nossa ignorância iniciática, gostava de falar dos seus transportes. Causava inveja a facilidade com que ela viajava para regiões longínquas da Terra e de outros mundos. Eu a escutava fascinado, um tanto invejoso da sua facilidade, pois eu nunca conseguira fazer a mais prosaica viagem, e nem sequer tentara... Ela nos visitara no dia anterior, e eu meditava sobre quanta coisa me restava aprender na vida espiritual, quando Neiva chegou ao meu escritório, com ar cansado.
- Não vai me dizer que você andou viajando – disse eu à guisa de cumprimento.
- Como é que você sabe? – respondeu ela, surpresa – De fato, esta noite, tive um transporte pesado. Meu Deus, como sofri!...
- Mas, – perguntei – você se transportou, viajou no outro mundo, no espaço?
- Não sei o que você chama de outro mundo. – disse ela – Para mim tudo é uma coisa só, é logo ali... – e esticou o lábio inferior, imitando o clássico gesto caipira. Em seguida, voltou ao ar de tristeza e cansaço. Fiquei calado, à espera do que me fosse contar.
- Você se lembra – começou ela – daquele cearense que me procurou ontem, um sujeito de uns quarenta anos, amorenado?
Vasculhei minha memória, mas não consegui me lembrar do homem. Ansioso por ouvir o que tinha para me contar, respondi que me lembrava. Queria saber mais sobre as viagens.
- O nome dele é Alcino, – prosseguiu Neiva – um candango igual a esses muitos que vieram para Brasília, em busca de fortuna. Fazia dois anos que ele havia deixado a mulher e a filha no Ceará, com a clássica promessa de ir buscá-las mais tarde. Aqui ele trabalhou e conseguiu erguer um barraco na Vila do IAPI. Só que esqueceu da família e nem sequer deu notícias a ele durante todo esse tempo. De fato, ele havia deixado sua terra por embaraços e intrigas, resultantes da miséria em que vivia. Talvez cansado da vida solitária que estava levando aqui, resolveu pedir as contas na empresa em que trabalhava. Conseguira juntar mais de dois mil cruzeiros. De posse do dinheiro, tornou-se indeciso sobre o que faria. Começou a pensar na mulher e na filha, e resolveu retornar ao Ceará. Com todo aquele dinheiro, pensava, poderia dar uma demonstração do seu valor àqueles que o desprezaram e, quem sabe, ser bem recebido pelos que abandonara. Porém, o impulso não era suficientemente forte, e resolveu consultar-me. Quando se sentou à minha frente, senti um calafrio. Olhei nos seus olhos e vi a morte neles!
- A morte? – perguntei – Que é isso!...
- Sim, – disse ela – a morte! De pronto, Mãe Etelvina apareceu e começou a me falar de Alcino. Enquanto isso, ele ia desfiando sua história. Pelo que ela dizia e pelo que ele falava, o quadro ia ficando absolutamente nítido. Na trajetória cármica daquele pobre candango, havia uma promessa de morte, um assassinato. Seu destino provável era o de assassinar alguém, talvez a mulher, talvez o homem com quem ela vivia atualmente, mas perderia a vida nesse episódio doloroso, pois o seu tempo, na Terra, havia chegado ao fim.
- E aí, – perguntei – o que você fez?
- Estava deveras penalizada. Longe da família, sozinho na via hostil da Brasília em obras, ele havia evoluído muito. Sentia saudades da esposa e da filha, a quem poderia oferecer, agora, um pouco mais de conforto. Mas, pelo que dizia Mãe Etelvina, já era tarde. A esposa, cansada de esperar, com problemas financeiros, juntara-se com outro homem, justamente o que tinha reajuste com Alcino de outras encarnações. E o pior é que estava grávida. Realmente, agora era tarde! Meu Deus, o que poderia fazer por ele? Olhei para Mãe Etelvina, que meneou a cabeça de forma negativa. Reagi contra aquela situação de tristeza, e disse a ele:
- Meu filho, vou ajudá-lo a resolver o que você fará com esse dinheiro. Vá para sua casa, e confie em mim. Quando é que você pretende partir?
- Amanhã! – respondeu ele.
Neiva continuou a narrativa:
- Dei-lhe, então, uma florzinha de plástico, daquelas que tenho em minha mesa. Você sabe, não é, Mário, essas flores preparadas, que chamamos de “príncipe”, e ele se foi. Nessa noite, mal tinha me deitado, senti as vibrações de Alcino. Dormi um sono agitado, em que me debatia com o problema dele. Por volta das três horas da madrugada, senti um puxão violento, seguido do alívio imediato ao me libertar do corpo. De pronto, percebi que as vibrações de Alcino me arrastavam para perto dele. Fora do corpo eu sou totalmente consciente, e procurei controlar minhas emoções. Encaminhei-me para os lados do IAPI, e comecei a procurar o barraco de Alcino. Creia-me, Mário, não foi fácil. O quadro de uma favela na madrugada é algo de estarrecer. Havia chovido, e as ruas imundas, estavam encharcadas pela água que corria, levando lixo para os córregos. As vibrações foram aumentando, e percebi que estava na rua de Alcino. Ouvi, então, um canto cadenciado e percebi que era um ponto de macumba. Identifiquei o ponto do Exu Ventania, e a voz era a de uma mulher. Aproximei-me do mísero barraco e vi uma mulher magra, de uns quarenta anos, que fritava uns bolinhos num fogão de carvão. Enquanto lidava com as frituras, cantarolava o ponto de Ventania.
- De novo os exus! – interrompi – A toda hora você topa com eles, Neiva!
- Sim, meus Mestres se preocupam muito com eles. Há sempre um plano em andamento, na Espiritualidade, visando ajudá-los. Não esqueça, Mário, de que são espíritos filhos de Deus, como nós. Veja o caso de Ventania, por exemplo. Sua falange é poderosa e enorme, e ele procura se evoluir através da assistência que proporciona às pessoas de sua afinidade. Tem uma força tremenda, e usa inúmeros aparelhos em seus trabalhos.
- Aparelhos? – perguntei, sem entender.
- Sim, aparelhos, equipamentos. – respondeu – São máquinas complicadas, fabricadas com magnético animal, que custam caríssimo.
- Explica melhor! – implorei – Para que servem esses aparelhos e porque precisam deles?
- É simples, Mário. Já lhe disse que os exus são espíritos cultos, inteligentes, mas sua inteligência e sua cultura são apenas materiais, do plano mental concreto, do raciocínio que não alcança a nuança espiritual. Mário, é preciso que entenda bem, pois isso é muito importante! O mundo da mente humana, da psique, da psicologia, é cheio de recursos extraordinários, mas tudo gira em torno do plano físico, regulado pelas leis que regem esse plano. O Homem, deslumbrado com esses poderes, se enche de orgulho, de auto-suficiência, e perde as possibilidades de contato com o outro plano, o plano do espírito! A diferença entre os dois planos é tão sutil que a mente carregada de conclusões racionais não a percebe. É o caso dos exus. Vivendo no plano etérico, o exu lida com a maleabilidade molecular desse plano. Lida com a matéria-prima, que são o ectoplasma humano e os fluidos animais da Natureza, e com ela faz a base da sua vivência e da sua riqueza. É como o Homem encarnado no plano físico, que baseia sua vida na matéria-prima da Natureza, como o petróleo, os minerais, a terra etc. Quem controla a matéria é senhor da riqueza, é mais forte ou menos forte socialmente, dependendo da sua capacidade de obter e controlar essas riquezas. Um Homem que tenha mais dinheiro, tem mais equipamentos, não é verdade? Assim são os exus. No etérico, existem escolas, indústrias e comércio, da mesma forma que na Terra. Não é bem igual à Terra, onde o plano é mais natural, mais harmônico, e os seres estão em um plano evolutivo definido. Como poderei lhe explicar? É como a vida na Terra deformada, desfocalizada, cheia de contrastes violentos. Na Terra, o ódio e o amor se equilibram. No mundo dos exus, predomina o ódio.
- E para que servem esses aparelhos? – tornei a perguntar.
- Servem para muita coisa. O Exu Ventania, por exemplo, tem um aparelho que o torna invisível no seu mundo, e se orgulha muito dele, como qualquer cidadão se orgulha do seu carro último tipo.
- Mas, – tornei a insistir – se eles são espíritos, como você quando está fora do corpo, não precisariam de aparelhos para se locomover. Para citar um exemplo, você foi à Vila do IAPI pelo simples pensamento. Você pensou, e já estava lá. Os espíritos pensam e, pronto, já se acham onde quiserem, até mesmo em outros mundos, não é verdade?
- Sim, Mário, e é justamente aí que quero que perceba a diferença sutil de que falei. Envolvidos no pensamento materializado, eles não sabem que podem se transportar facilmente pelo pensamento. Simplesmente, eles não concebem, não percebem a realidade. Entende, agora, a diferença entre a apreensão espiritual e a apreensão intelectual? Nós nunca fazemos aquilo que não concebemos, de que não cogitamos. E não pensa você que eles não tenham notícias dessas coisas, das coisas do espírito. Eles, simplesmente, as negam e não acreditam nelas! Procuram, sempre, uma explicação racional, e nunca conseguem entender. Como não entendem, negam! Como negam, não possuem, não vivem essas coisas...
- Mas, – arrisquei – de tanto verem espíritos iluminados, eles devem desconfiar que existem outros meios, não é verdade?
- Não, Mário, – respondeu ela pacientemente – eles não vêem os espíritos iluminados, eles não penetram no plano de luz e, quando conseguem ver algo, atribuem este fato a um fenômeno que urge descobrir. É por isso que estudam com afinco! Mas estão sempre presos no seu círculo vicioso, da mesma forma que os homens que querem descobrir Deus, a alma, o espírito, nos seus laboratórios e com seus aparelhos. E há outro fato: o controle espiritual. Os Mentores simplesmente não os deixam penetrar nessas forças do espírito, porque tais forças seriam desperdiçadas na sua filosofia egocêntrica. Poderes só são dados a quem se desprende do egoísmo, a quem se coloca a serviço do Amor Crístico. É por isso, Mário, que você às vezes vê uma criatura simples, sem cultura intelectual, com poderes extraordinários, e, paradoxalmente, vê portentos intelectuais que são verdadeiras nulidades espirituais. Há, ainda, um detalhe, que é preciso que você entenda, Mário. O Homem encarnado tem muito mais poderes que os exus! Na verdade, essa classe de espíritos assedia, de preferência, homens inteligentes, cultos, religiosos, porque extraem o conhecimento deles! É nessa... como é que você diz?
- Simbiose. – disse eu.
- Pois é, nessa simbiose, o Homem encarnado e os exus de entendem, embora os dois estejam se enganando sem saber! Na verdade, se não fosse a cupidez humana, em aproveitar o que julga ser poder sobrenatural dos exus, esses espíritos se evoluiriam mais depressa, sairiam da triste situação de marginais entre dois planos! É por isso que Moisés proibia o intercâmbio com os espíritos e todas as religiões o proíbem. É nisso, também, que a Ciência Espiritual difere fundamentalmente das religiões. Não é o intercâmbio com os espíritos que é perigoso, mas, sim, o tipo de intercâmbio. Em nome da Luz Crística, do Amor e do Perdão, nós consideramos os exus, como todos os espíritos, objeto de amor e de carinho. Nada queremos deles, nada eles podem fazer por nós, a não ser nos dar a oportunidade de exercer nossa fé, nossa capacidade missionária, nosso amor. Não temos o direito de nos furtar a ter relações com eles e nem de fugir deles.
- Acho que os sacerdotes têm razão quando proíbem esse intercâmbio. – disse eu – Parece-me perigoso se meter com eles.
- Mas, Mário, – tornou ela – esse pensamento é tão negativo quanto o dos próprios exus. Diga-me uma coisa: você considera perigoso se meter com portadores de doenças contagiosas?
- Sim. – titubeei.
- É, mas outros se metem com eles, tratam deles, curam-nos e, na verdade, médicos e enfermeiros não param de trabalhar para ajudá-los, não é verdade? O problema que se apresenta é o mesmo que o dos exus. É o tipo de intercâmbio. Você se lembra, há muito tempo, quando houve um escândalo em nosso País, a respeito de um grupo de pessoas que arrecadava dinheiro em nome dos cancerosos? Pois é, o problema da Ciência Espiritual com os exus é o mesmo. Só que não é um problema de dinheiro ou de poder. É um problema de honestidade iniciática, da interpretação correta do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Desculpe, Neiva. Desviei-a demais do assunto de Alcino. Com essa preocupação com os exus, a gente até perde o fio da meada!
- Não, Mário. É bom que vejamos todas essas coisas. Não se esqueça de que estamos no limiar do Terceiro Milênio, e essas coisas terão que ser aprendidas por todos. Mas, voltemos ao nosso amigo Alcino. Enquanto observava a mulher fritando os bolinhos, vi quando Ventania passou rápido, atraído pelo ponto. Abandonei a cena e tive minha atenção despertada por um alarido noutro barraco. Um homem aleijado, com as pernas deformadas, sentado num carrinho tosco de madeira, gritava colérico com um menino de uns doze anos de idade, e procurava atingi-lo com uma vara, tentando espancá-lo. Gritava para que ele acordasse, pois iriam perder a hora de ir para a feira, que já estava se formando e, se demorassem, iriam perder seu lugar lá. Meu coração se confrangeu com aquela cena de miséria e lembrei-me da minha missão ali: encontrar Alcino. Mesmo assim, não pude evitar de ver outras cenas. Casais se entrelaçavam em desvãos escuros. Um homem comentava com a mulher a demora do caminhão que o conduziria à obra onde trabalhava. Num outro barraco, um casal discutia com tristeza. Aproximei-me, e vi que se tratava da despedida de amantes clandestinos. A esposa do homem chegaria naquele dia, vinda do Nordeste, e ele teria que se juntar a ela, abandonando a amante, de quem gostava realmente. Sempre os reajustes, os carmas! Por fim, cheguei ao barraco de Alcino. O choque foi terrível, Mário. Cheguei no momento preciso em que um crioulo forte enfiava uma faca nas costas de Alcino, e esse tombava, morto! Estarrecida, olhei aquela cena terrível e me senti paralisada pelo terror. O crioulo, calmamente, limpou a faca na coberta da cama, e, abrindo a mala de viagem de Alcino, puxou, do fundo, um maço de notas, pondo-se, tranqüilo, a contar o dinheiro. Fiquei em desespero. Tinha que fazer alguma coisa. Aquilo era horrível demais! O pobre Alcino havia confiado em mim, e eu lhe prometera proteção. Será que havia falhado em minha missão? Súbito, algo se passou em minha mente. Lembrei-me da noite terrível que havia passado, cheia de pesadelos. Houve uma movimentação e, num relance, percebi, pela minha experiência, que eram os Médicos do Espaço fazendo o desencarne de Alcino.
- Desencarne? – perguntei – Que história é essa?
- Ora, Mário, no desencarne acontece o mesmo que no nascimento: exige cuidados médicos dos dois planos.
- Nos dois planos? Quer dizer que os médicos da Terra ajudam a despachar as pessoas?
- Mário, você é mesmo irreverente! É lógico que eles não ajudam a despachar, como você diz. Aplicando todos os recursos, na tentativa de salvar o paciente, eles curam muita coisa antes que o paciente morra. Muita dor e sofrimento são, assim, poupados. O paciente que morre bem assistido chega ao outro lado com muito menos trauma e muito menos defeitos no seu perispírito. Na verdade, embora os médicos da Terra não saibam disso, eles trabalham sempre em equipe com os médicos espirituais, cada um atuando no seu plano. Ambas as equipes, uma sabendo e a outra sem saber, obedecem aos ditames da Lei Cármica, e o paciente desencarna no momento previsto. Todo desencarne é feito antes da morte física. Quando chega a hora, os Mentores e Guias tomam as providências necessárias e o “parto” para o outro lado tem início. Geralmente, dura de três a quatro horas. Mas, não existem dois desencarnes iguais. Cada caso exige atenção especial. Há muita coisa que gostaria de lhe explicar a esse respeito, mas fica para outra ocasião.
- Só uma coisa. – disse eu – E no caso da morte violenta, de desastre?
- É a mesma coisa. Muitas vezes a pessoa está dirigindo calmamente seu carro e seu desencarne já está sendo feito. Logo adiante, o carro capota e ela morre, às vezes inexplicavelmente. Isso mostra, inclusive, porque certas pessoas saem vivas de desastres terríveis e outras morrem de uma simples batida.
Neiva fez uma pausa rápida, e continuou:
- Voltemos ao Alcino. Eu continuava ali, perplexa, sem saber o que fazer. Sabia, agora, que fora atraída pelo subconsciente dele. Pressentindo sua morte, e não tendo para onde apelar, lembrara-se de mim. Com o “príncipe” que lhe dera, eu o colocara sob a proteção da Magia, e ele teve, assim, muito maior assistência do que teria se não fosse esse fato. Mais calma, fiquei observando a cena, e vi que o crioulo havia deixado cair uma carteira com sua fotografia. Nesse momento, a mulher dos bolinhos parou na porta do barraco e gritou qualquer coisa. O crioulo abriu parcialmente a porta, escondendo a cena do crime com o próprio corpo, e comprou uns bolinhos dela. Pagou com duas notas de alto valor, e a mulher deixou escapar uma exclamação de surpresa. Pegou o dinheiro e disse:
- Puxa vida, hoje é meu dia de sorte! É só eu invocar o “seu” Exu Ventania e ele me dá sorte! – e olhando para o crioulo, falou: - Puxa, que cara! O que aconteceu com você?
- Nada. – respondeu o crioulo – Essas notas são pro seu exu. Compre umas velas e as ofereça para minha proteção. Preciso de muita sorte, hoje.
O crioulo fechou a porta atrás de si, e sumiu na madrugada. Já eram umas seis horas da manhã, e eu estava ali, sem saber o que fazer, quando percebi a presença de Mãe Tildes.
- Minha mãe! – exclamei – Que coisa horrível! Não sei o que estou fazendo aqui. Sei que falhei com esse pobre homem que confiou em mim, e eu nada fiz para evitar a sua morte!
- Não, minha filha, – disse ela – não é assim. Na verdade, sua presença aqui foi para ajudar no desencarne de Alcino e impedir que aquele crioulo continue a cometer seus crimes. Esse é o terceiro homem que ele mata para roubar e, se não for impedido, irá matar outros. Sua missão é a de entregá-lo à Justiça.
- Eu? Como? E o pobre do Alcino? O que aconteceu com o espírito dele?
- Você não pode ver, minha filha, mas o espírito dele está ali, a um metro acima do cadáver. Nesse momento, ele está recebendo todo o acervo da encarnação que terminou. Ficará assim, próximo ao corpo, até se encharcar de todo. Quando a última partícula for absorvida, os Mentores dele levarão seu espírito para Pedra Branca, e o corpo entrará em decomposição. Seu ectoplasma está sendo usado, neste instante, para os outros atos deste triste drama.
Naquele momento, o garoto do mendigo veio bater à porta, mas percebendo-a entreaberta, empurrou-a, como quem já está familiarizado, e deu um grito, recuando. Formou-se uma algazarra na porta do barraco do mendigo, quando o menino contou o que encontrara, com muita gesticulação e gritos. O garoto saiu correndo e, pouco depois, retornou, acompanhado de uns policiais, que entraram no barraco de Alcino e iniciaram seus exames de rotina, como quem já está acostumado com essas cenas. Enquanto os policiais trabalhavam, Mãe Tildes me explicou:
- Veja, minha filha, o que são os reajustes e os laços cármicos. Esse cadáver só seria descoberto quando estivesse putrefato. Nessa altura, o crioulo já teria matado outros e teria fugido. Esse garoto estava habituado a receber uma esmola de Alcino todos os sábados, e é por isso que veio aqui.
- E esse garoto, Mãe Tildes, que destino triste o dele, por ter que servir a um mendigo tão irascível!...
- Esse garoto, minha filha, é um espírito evoluído, que só veio para passar por essas provas e servir de elemento de ligação na justiça ao crioulo, que esta madrugada, tramou a morte de sua amante em seguida ao assassinato de Alcino. Logo esse menino irá desencarnar e vai se juntar a Zenóbio, seu pai, que é um missionário de Mayante.
Enquanto Mãe Tildes conversava comigo, os policiais acharam a carteira do crioulo junto ao corpo de Alcino.
- Vejam, – disse um deles – este é aquele cara que passou por nós, há pouco, e parou, à espera do caminhão da construtora, comendo bolinhos. Vamos localizar a empresa e o bicho está no papo!
Ainda traumatizada e um pouco cansada daquilo tudo, lembrei-me de perguntar a Mãe Tildes sobre a esposa de Alcino, se ela não estaria incluída naquele reajuste, se ela não teria, também, um pouco de culpa.
- Não, minha filha, ela não tem qualquer culpa. Durante muito tempo, foi evitado um mal maior, pois Alcino iria se endividar ainda mais. Se ele voltasse para o Ceará, iria se defrontar com o velho inimigo, e ambos se matariam. Graças à sua interferência e à fé que Alcino depositou na sua Doutrina, o carma se cumpriu em melhores condições.
O dia já clareava, e eu voltei para minha casa, para o meu corpo. No caminho, passei por cima da obra onde o crioulo trabalhava, e vi um carro de radiopatrulha parado e os policiais conduzindo-o, preso. Fiz uma prece silenciosa em benefício daquele espírito atribulado, e voltei ao meu sono normal.

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