quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sob os olhos da clarividente (4)




OS AMIGOS DA OUTRA DIMENSÃO

Havíamos terminado o trabalho com um homem que chegara obsidiado e sentamo-nos, por momentos, na soleira da porta do Templo. Preocupava-me o diálogo agressivo com a entidade obsessora, onde um detalhe me intrigava: sua referência constante a Deus e à Justiça. Neiva fumava em silêncio, e seu olhar se perdia na distância. Aos poucos, começou a falar:
- É, tenho muito amor aos exus, e eles são meus amigos.
- Mas, afinal, o que é um exu, realmente?
- Ora, um exu é um espírito como outro qualquer, geralmente um homem de bem, um pai de família que desencarnou normalmente. O que os torna diferentes no mundo dos espíritos é que são cultos, cientistas, doutores, enfim, pessoas de posição. Desencarnam irrealizados, cheios de pretensões, agnósticos, descrentes das leis do Cristo. Como não crêem em coisa alguma, não aceitam as coisas simples. Tão pronto desencarnam, são atraídos para a companhia de entidades experientes na manipulação de forças.
- Forças do mal? – perguntei.
- Mário, quero que você me entenda bem. Não existem forças do mal ou forças do bem. Existem, simplesmente, forças, que são empregadas no bem ou no mal. Depende de quem as controla, e como as controla. Veja o exemplo da eletricidade. Se bem empregada, produz a luz, o calor e todos esses benefícios. Se mal empregada, pode matar, incendiar, às vezes, até, em nome da Justiça, como a cadeira elétrica, que vocês dizem existir lá na América.
- Quer dizer que esses espíritos podem controlar essas forças tanto como nós aqui no Templo?
- Depende. Depende do plano de trabalho, da camada onde eles  operam. Geralmente, esses espíritos não conseguem atingir mais que um plano inferior, próximo da superfície terrestre, onde as forças são densas, animalizadas. Não aceitando o Cristo, a Lei do Amor e do Perdão, não sintonizam com as forças do astral. A não ser aqueles que lidam com a Magia Negra, que manipulam forças extraordinárias – às vezes com a bênção de Deus – a maioria deles trabalha mesmo é com o magnético animal – ectoplasma humano, mediunidade.
Apesar da minha ansiedade em saber mais, em aprender, a Clarividente se calou. Percebi que voltavam as reminiscências, e vi uma lágrima descer-lhe pelo canto dos olhos negros e belos.
- Lembra, Mário, – disse ela com voz triste – quando eu estava em Formosa? Montei aquela fábrica de roupas com tanto carinho, e fui tão mal recebida, apesar do amor que tenho por todas as criaturas. Já tinha sido despojada de tudo que possuía e, ainda por cima, fui levada à Justiça do Trabalho pelas minhas operárias, deixando-me na pior situação. Não podia continuar com a pequena indústria e, também, não podia sair. Sabedores de minhas dificuldades financeiras, os exus começaram a me fazer propostas.
- Exus fazendo propostas? – estranhei – Como é que isso acontecia? Sei que você vê e fala com os espíritos, assim como eu estou falando com você. Mas, como é que exus mostram interesse em problemas como esse, por exemplo, uma pequena indústria em dificuldades e uma Clarividente industrial, enfim, um quadro de fato esquisito?...
- Ora, é claro, Mário. Vivendo à custa das forças dos seres humanos, nas macumbas e nos ambientes de depravação, em lugares onde haja vida animalizada, esses exus se nutrem de tal maneira que são quase materializados. Por exemplo: eles ouvem a minha voz ou qualquer outra, mas não conseguem nos ver, ou melhor, eles vêem de acordo com o nosso padrão vibratório.
- Essa está difícil de entender. Quer dizer que eles vêem e não vêem? Como é isso?
- Explico. Sendo de outra dimensão, não tendo um corpo físico e, sim, um corpo etérico materializado, eles não vêem a luz do Sol. Ao contrário, a luz do Sol queima-lhes a emanação e sua iluminação não é percebida por eles. Para nós, encarnados, eles vivem numa espécie de noite permanente. Se, porém, nossa vibração está baixa, nossos pensamentos estão negativos, tristes ou sensuais, nós penetramos até certo ponto na noite deles, tornando-nos relativamente visíveis e audíveis. É por isso que somos assediados por eles. Ora, eu estava num estado depressivo, numa fábrica parada, vendo meus sonhos desfeitos, numa cidade hostil. Para agravar o assunto, estava comigo um rapaz de 19 anos, que tinha um quadro triste de assassinato. Ele havia ido pescar com meus meninos, e eu estava ansiosa para mandá-lo de volta a Brasília, para junto da mãe. Não via jeito de desviá-lo do destino triste.
- Ah! Eu me lembro do caso. De fato, ele foi esfaqueado pelo próprio padrasto, dias depois!...
- Nessa situação, é fácil perceber porque os exus se aproximaram de mim. Aliás, contribuía para isso, também, o ambiente daquela cidade antiga, com um passado cheio de crimes e cangaços.
Percebi que as explicações se alongavam, e lhe pedi que voltasse às propostas dos exus.
- Tive um contato muito sério com um espírito que disse se chamar Exu Capitano, – continuou – um exu que dominava uma falange de espíritos pelos quais era temido e respeitado. Esse exu pertencia à falange do Exu Marabô, e seu título de Exu Capitano lhe fora outorgado pelo Major Trajano, braço direito do Exu Marabô. Como você pode perceber, eles são organizados em complicadas hierarquias e usam roupas vistosas, de acordo com sua fantasia e sua posição.
- Roupas no plano astral? – perguntei.
- É lógico, Mário. Assim na Terra como no Céu, não diz o Pai Nosso? As coisas que existem aqui, existem lá. É lógico que é outra matéria, como você costuma explicar...
- Outra organização molecular, é isso que você quer dizer?
- Isso mesmo! Voltemos ao nosso amigo Capitano. Como você sabe, eu havia sido vítima de um seqüestro indevido. Haviam tomado tudo que existia na fábrica, vestidos caros, fabricados com grande sacrifício, máquinas de costura etc., e remetido para o depósito público da cidade, que era nos fundos de um bar. A ação judicial tinha sido feita com requintes de perversidade e, gratuitamente, os maiorais da Justiça estavam contra mim. Veja, agora, o que me disse Capitano: “Mulher, meu nome é Salviano, sou dono desta cidade, nascido e criado aqui. Se você quiser, vou acabar com esse tal de doutor Caio, que não vale nada. Aliás, tenho ódio dele e de todos daqui!"” A irradiação dele era de tal maneira, que o desespero começou a tomar conta do meu coração. De repente, vi-me levada ao padrão de ódio e marginalização que aquela situação aparentemente justificava. Compreendi, então, porque se deve amar os que estão em falta com a Justiça, e como o ser humano pode ser levado à revolta e ao crime se não tiver uma doutrina que o ampare. Mãe Tildes veio em meu socorro. Usando habilidades de um espírito habituado com nossos problemas, conseguiu fazer-me voltar à realidade. Sem que Salviano, atual Exu Capitano, percebesse, ela interrompeu aquela irradiação e voltei ao meu padrão normal de amor e compreensão. Capitano continuou ali, porém nossas posições mudaram. Percebendo que eu não me rendia à sua autoridade, nem aceitava seu auxílio, lastimou-se muito. Falou, procurando provar que minha atitude de amor e perdão era ilógica, que o Cristo era um vencido, que o que importava mesmo era o domínio das forças e a Justiça de Deus. Mas, o tempo todo, ele reconhecia e elogiava a minha força. Percebe, agora, Mário, porque eles não aceitam o Cristo e crêem em Deus? No caso, Deus é apenas um conceito que cada pessoa ou grupo concebe, à sua maneira. Em nome Dele se fazem justiças ou injustiças. Dois exércitos partem para a luta, em campos antagônicos. Em ambos os lados as armas são abençoadas e se pede a proteção de Deus. O Cristo, porém, o Cristo Jesus, não dá margem a interpretações pessoais. Seu Evangelho é nítido, por mais que se deformem as palavras, e pode ser entendido por qualquer criatura humana. Pode não haver aceitação – como no caso do meu amigo Capitano – mas a posição é nítida e clara.
Ouvi, pacientemente, a história de Salviano dos Santos.
Fora mau filho e péssimo marido. Casara-se com uma moça de nome Edite, a quem abandonou por outra, chamada Maria de Lourdes. Edite caíra na prostituição e morrera nas piores condições, odiando o homem que a infelicitara. Não tardou que Maria de Lourdes tivesse o mesmo destino, prostituindo-se e morrendo à míngua. O desencarne de ambas se dera mais ou menos vinte anos atrás. Enlaçadas pelo ódio comum, viviam a atormentá-lo, exigindo sempre a reparação. Ele, apesar do poder sobre tantos espíritos que escravizara, não conseguia se livrar delas pelo remorso de que era portador.
Já equilibrada e em harmonia comigo mesma, minha preocupação passou a ser a  de como salvar aqueles espíritos atormentados. Capitano passou a pedir-me socorro. Admitia suas mentiras e astúcias, e pedia que eu fizesse algo por ele.
- Mas, – perguntei eu – se ele era um exu poderoso, se tinha uma falange de escravos, se tinha convicção de sua posição, pedia socorro para quê?
- Amigo Mário, a posição negativa é falsa e a realidade que existe no coração de cada ser nunca é destruída. Essa realidade é a partícula crística, o átomo de luz indestrutível. Ela pode ser escondida, escamoteada pelo ódio e pelas trevas, mas sempre permanece latente. É por isso que existem dores, anseios, saudades e algo indefinível na mente humana. Acrescente a isso a situação do espírito desencarnado em nosso plano. Ao desencarnar, ele perde os instrumentos naturais de relação, que são os sentidos. A mente e as sensações continuam, porém sofrendo as deformações que a ausência dos sentidos produzem. O que faz o espírito nessas condições? Procura a energia que lhe permita manter-se na Terra. Essa energia é o fluido animal que nós emitimos e que existe em outras formas da natureza. Esse processo é difícil em todos os sentidos. Na obtenção do ectoplasma, ele é obrigado a incentivar a mediunização das pessoas em baixo teor. Seu padrão vai decaindo tanto, que ele lança mão do ectoplasma do sangue dos animais, comidas, plantas, etc. Imagine agora o mesmo problema de alimentação dos seus asseclas, espíritos transformados em serviçais, e você compreenderá o porquê da multiplicação das macumbas, das feitiçarias e todas as forças macabras do chamado diabolismo.
Neiva continuou. Procurando acompanhá-la, ansioso por compreender, comecei a sentir a sensação desagradável daquilo que ouvia. Ela me olhou e sorriu, no lusco-fusco da noite próxima.
- Está sentindo alguma coisa? – perguntou.
Assustei-me e disse que sim, que estava sentindo uma sensação desagradável, que atribuía ao assunto pesado.
- Não, – disse ela – não é o assunto que está influindo, mas, sim, a presença de alguns exus que estão nos ouvindo.
- Exus? – perguntei assustado.
- Sim, exus, amigos nossos que vêm ao Templo para ouvir a Doutrina e que estão interessados na nossa palestra. A emanação deles ainda é pesada, mas eles são amigos e estão aqui para melhorar suas vidas. Devemos ter carinho com eles!...
Pelo tom de voz em que ela falava, me compenetrei de que eles estavam ouvindo. É lógico, se estavam ouvindo a palestra, estariam ouvindo, também, a referência à sua presença.
Interroguei-a com um gesto, com medo de cometer algum erro, e ela me confirmou a suposição do fato evidente. Explicou-me que o trabalho de conversar com exus é muito cansativo, pois é feito de duas maneiras: pelo tom de voz alto ou com ectoplasma, o que materializa as imagens mentais no plano deles. E com um gesto de quem estava há muito acostumada com o fenômeno, continuou:
- Outro aspecto doloroso da sua vida é o físico. Eles estão numa posição antinatural. Nem pertencem ao meio físico, nem ao espiritual. As coisas do mundo físico causam-lhes dor, como o calor do Sol, por exemplo. Pela deformidade de suas mentes, o corpo, que conseguem artificialmente, apresenta inúmeras desarmonias. Seus pés geralmente são deformados, como patas de animais, e, com a movimentação, queimam, ardem...
- Se a vida deles é assim difícil, porque permanecem nela? – perguntei, irritado.
- Ora, Mário, sua pergunta não faz muito sentido. Observe as pessoas, os seres humanos. Em sua maioria, não estão em posições difíceis, dolorosas? E você se arriscaria a lhes perguntar por que não saem delas?
Tive que concordar que, de fato, a vida apresenta aspectos às vezes absurdos. Por que tantos seres humanos não saem do sofrimento e da dor?
- Mas – continuou ela – graças a Deus e às Leis Divinas, os seres acabam por sair da dor e do sofrimento. Todos, mais cedo ou mais tarde, o conseguem, de uma forma ou de outra. Deus não tem pressa! É preciso que o ser evolua, tome consciência de si mesmo e perceba a eternidade que tem dentro de si próprio. Essa é a finalidade da nossa amiga, a dor.
Meu interesse, naquele e nos outros dias que se seguiram, foi o de salvar aqueles espíritos da situação aflitiva em que se encontravam. Neiva prosseguiu:
- Como se não bastasse o tormento das duas mulheres, outros espíritos prejudicados pelo Coronel Salviano dos Santos se juntaram a elas. E ali estava eu, longe do meu Templo, numa cidade saturada de espíritos sofredores e em meio a um povo cheio de superstições e falsas formas religiosas. Precisava de ectoplasma, força mediúnica, ajuda que viria, principalmente, de Doutrinadores. O socorro chegou na pessoa de dois Doutrinadores que, lá de Brasília, se ligaram em mim. Mentalizei, e vi que os dois estavam se preparando para vir a Formosa, me visitar. O intercâmbio que se estabeleceu, permitiu-me captar o ectoplasma deles e, na mesma hora, fiz um trabalho para Capitano. Distraí-me com alguns afazeres, dando tempo para que os fluidos novos impregnassem os três. Você vê, Mário, de quantas armas dispomos a serviço do nosso próximo? Com aquela doutrina, ou seja, o ectoplasma de Doutrinadores, novas idéias começaram a surgir nas suas mentes, e eles, talvez, viessem a tomar consciência de si mesmos. Eu jogara algumas sementes e o fluído iria atuar como água e adubo. Capitano iria começar a pensar, por exemplo, como é que ele, com tanta força, a ponto de se oferecer para me ajudar, não dava conta de se livrar das suas antigas amadas.
Neiva fez uma pequena pausa, e continuou:
- Sua primeira reação, após meu trabalho, foi de lamentações e justificativas. Percebi que ele tinha medo de perder sua posição e que a dúvida atormentava seu espírito. Empenhada em não perder aquela oportunidade, lancei mão de mais ectoplasma dos dois Doutrinadores, cujo carro já estava quase chegando à minha porta. Fiz uma “redoma ectoplasmática” de magnético animal, enclausurando o pobre Capitano para aguardar a chegada de Pai João. Seus olhos grandes me acompanhavam por toda parte que eu ia!...
A noite já caíra de todo. Alguém nos chamava para que fôssemos jantar. Várias pessoas esperavam por Neiva, ansiosas por uma consulta.
Irritado, como era meu costume, pelo aspecto ansioso dessas pessoas, já me preparava para enxotá-las, livrar Neiva delas, mas parei, diante de um pensamento que me ocorreu: pelo meu ciúme da Clarividente, poderia enxotar os encarnados, mas como eu faria com os exus?
Esse pensamento me tornou mais sóbrio e tolerante...

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