quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sob os olhos da clarividente (10)




E M E R E N C I A N A

Marcolino de Souza Filho, 43 anos. Emerenciana Ramos de Souza, 40 anos.
Neiva deu início ao seu relato:
- Quem deu os nomes foi Marcolino. Emerenciana, sua esposa, o objeto da consulta, não tinha condições de falar, pois havia sofrido um derrame cerebral. Muda, a boca deformada, num ríctus desagradável, movendo-se com dificuldade, a mulher que estava diante de mim era bem diferente da Emerenciana de cinco anos atrás. Seus olhos, cheios de lágrimas, reconheceram-me e imploraram ajuda, na sua muda linguagem. Meu pensamento voltou, como um raio, para a consulta que fizera. Cinco anos!... A Emerenciana de então se orgulhava de ser uma mulher bem conservada. Vinha para pedir auxílio para o marido. Queixava-se de que ele era ruim e intolerante, não a deixava viver em paz.  Eu olhara seu quadro e vira que aquela atitude não correspondia inteiramente à verdade. Nada vira no comportamento do marido. Vira, apenas, uma mulher irrequieta, assediada por inúmeros cobradores espirituais e habituada a mandar. Procurara a razão mais profunda e verificara que ela havia sido uma senhora de escravos, e que estes já se aproximavam, para cobrar as crueldades que ela havia praticado. Entretanto, pela própria atitude dela, não vira condições para chamá-la à razão. Como faço num caso desses, mobilizei toda a doçura que podia e convidei-a ao trabalho espiritual. Disse-lhe que ela precisava trabalhar mediunicamente.
- Ah, dona Neiva! – respondeu ela – A senhora não conhece meu marido! Ele não gosta de espiritismo, diz que tudo é macumba e não consente que eu trabalhe. Sinto muito, dona Neiva, mas não posso vir!...
Neiva continuou:
- Agora, ali estava ela, naquela triste situação. Voltei-me para Marcolino, que me olhava esperançoso, e lembrei-o da consulta que Emerenciana havia feito antes.
- Mentira, dona Neiva! Ela nunca me disse que a senhora a havia convidado para o trabalho espiritual. Se ele me tivesse falado na ocasião, eu teria dado graças a Deus, pois eu vivia desesperado, procurando alguma coisa que a acalmasse. O que ela sempre quis, na verdade, foi infernizar a minha vida.
- Fiquei com pena dele, – falou Neiva – e achei justificada sua explosão. Entretanto, nada podia fazer. Cheguei a pensar em convidá-la, novamente, para o trabalho. Imaginei-a de uniforme, no meio do corpo mediúnico, mas desisti da idéia. Há cinco anos, tinha o charme bem distribuído, proporcional à cobrança que se aproximava. Com o seu desenvolvimento mediúnico, seu ectoplasma iria se afinando, seus cobradores iriam se afastando, na medida em que obtivessem a devolução do que se julgavam com direito, em termos de energia e de doutrina, e ela atravessaria seu carma com relativa tranqüilidade. Agora, com seu magnético animal concentrado, a única coisa que fazia era puxar seus cobradores para perto de si, e eles a sugariam até a morte. Não, não seria possível impregnar a Corrente com esse pesado fluido animal. A Corrente Indiana do Espaço é uma corrente muito fina, de espíritos em evolução, e tem muita força. Ela poderia, com seus poderes, trazer algum alívio e, talvez mesmo, absorver aqueles espíritos de negros escravos africanos. Mas, para isso, seria necessário que Emerenciana tivesse capacidade consciencional de tomar conta de si, e isso era impossível. Seu cérebro, seu sistema nervoso, sua circulação, tudo já estava deteriorado, e o espírito não tem capacidade de domínio quando o aparelho está estragado.
- Mas, Neiva, – disse eu – quer dizer que uma pessoa que esteja doente não tem oportunidade no mediunismo?
- Depende, Mário. Se a doença é apenas do carma e se ainda não atingiu os centros de controle do ser encarnado, é lógico que ele tem essa oportunidade. Naturalmente, ele não poderá integrar a Corrente se tiver algum defeito físico, mas, mesmo assim, pode ser assistido por ela e, até mesmo, se curar. Cada caso merece um exame especial. O principal é saber que tudo tem um tempo certo e uma oportunidade. Há pessoas que se devem iniciar, imediatamente, no trabalho, embora a aparência de suas vidas não indique essa necessidade. Há outras que irão precisar de muita integração, e outras que jamais irão precisar entrar para trabalhar mediunicamente. Afinal, o Mediunismo, o Espiritismo, as religiões e doutrinas, são somente meios, mais ou menos específicos, de colocar o ser humano em contato com o seu transcendental. Mas essas técnicas e formas não são fins em si, são apenas meios. A Natureza tem muitos meios de chegar ao mesmo fim, que é o ser humano se encontrar, realizar seu destino, seu programa de vida. Não se esqueça, Mário, de que todos trazem alguma doutrina dentro de si. É por isso que não devemos nos preocupar com o proselitismo. Sei que, muitas vezes, você se preocupa porque certas pessoas não voltam mais, médiuns desistem do trabalho, ou mais pessoas não podem ser atendidas. Não se preocupe, Mário. Importa é que o ser humano tenha despertado em si a consciência da outra vida, da vida do espírito. Se ele já experimentou isso, a própria vida encontrará um mecanismo para aproveitá-lo e conduzi-lo ao destino mais alto. Na verdade, me parece absurdo transformar uma pessoa, libertá-la do sofrimento e aprisioná-la numa rede de preconceitos religiosos ou doutrinários. Isso não é condizente com a liberdade humana!
- Neiva, você fala em liberdade humana. Como conceituar essa liberdade em face do carma? Por exemplo, no caso de Emerenciana, você respeitou a liberdade dela. Se tivesse insistido, apelado para o medo, contasse a verdade ou usasse de qualquer meio persuasivo, mesmo arranhando a liberdade de decisão dela, não teria evitado seu quadro atual?
- Aparentemente, sim, Mário, mas, na realidade, não. Afinal, o que é Espiritismo ou Mediunismo? Apenas técnicas de manipulação de forças humanas e forças do Céu. Pertencem, portanto, aos Homens e a Deus. Pergunto: podemos manipular essas forças sem o consentimento desses seres e de Deus? É lógico que não, Mário. Nós apenas recebemos o mandato de ajudar as pessoas, e não o de controlar seus destinos. O destino de cada um pertence a si mesmo e a Deus. Se insistirmos com uma pessoa, para que venha trabalhar e que se integre ao Espiritismo, partimos da premissa de que precisamos dela, de que ela vem para fazer um favor ao Espiritismo. Nesse estado psicológico, ela dá apenas o supérfluo – o que se confunde tão bem com a caridade – e nada lhe toca na consciência transcendental. Nesse caso, entram em jogo, apenas, sua personalidade transitória, os padrões comuns de comportamento, os chavões da vida. Teremos, assim, os médiuns de fins de semana, os dias reservados para Deus, os espíritos estacionados, as pessoas que nunca vão além da superfície de si mesmas. Se Emerenciana ingressasse na Doutrina na base de uma convicção exterior a si mesma, acabaria por sofrer do mesmo jeito que atualmente, e, o que é pior, levaria a descrença a outras pessoas. Mário, dói o nosso coração ver médiuns sofrendo seus carmas em más condições. É como ver uma pessoa morrer de sede na beira da torneira! Não, Mário, não é assim que se deve proceder. A gente deve amar as pessoas, tocar as veias profundas de seus corações, despertá-las para si mesmas, e ajudá-las até o limite da sua autonomia divina, do seu livre arbítrio. É o que aconteceu com Emerenciana.. Esse atual triste quadro é o seu limite. A vida ofereceu todas as oportunidades a ela, e eram oportunidades boas, segundo o conceito daqueles que a cercavam – seu marido, seus amigos e seus juizes! Mas, a verdadeira oportunidade está sendo essa que, agora, ela está sofrendo. O derrame atingiu sua sensibilidade, sua vaidade, sua veia sensível. Seu espírito retoma, agora, o caminho evolutivo, reconhece suas dívidas e sofre, proporcionalmente, a dor. Percebe, Mário, as relações entre dor e sofrimento? Suponhamos que ela viesse trabalhar sem convicção. A proteção da Corrente a pouparia de toda uma série de pequenos sofrimentos, pois sua psique teria a segurança do meio, de alguém que a ele pertence. A rotina mediúnica lhe permitiria ter a sensação de que estaria fazendo sua obrigação, e ela jamais emitiria o ectoplasma necessário, o que significa que não ganharia bônus suficientes para pagar a seus cobradores. Quando chegasse a hora do desencarne, já estariam eles à espera do seu espírito, trazendo-lhe o pavor da morte! Eu sei, Mário, que há muita gente nessas condições, e alguns são até mesmo conceituados como bons médiuns. Justamente por essa razão que nosso corpo mediúnico é tão variável e cheio de imprevistos. Evitamos toda forma de comportamento compulsório e regras rígidas. Deixamos que cada pessoa seja ela mesma e faça sua própria moral. Só assim elas sentem, por conta própria, as agressões da vida, e despertam as coisas profundas que trazem dentro de si mesmas. Nós visamos seus espíritos transcendentais, não as suas personalidades transitórias. Acho mesmo, Mário, que a diferença fundamental entre a Corrente Indiana do Espaço e as outras correntes reside nisso. Quando a pessoa chega à nossa presença, nós não estamos interessados no seu destino transitório, na sua posição social ou no seu conceito bom ou mau. Estamos, sim, interessados no seu carma e na sua mediunidade. Carma e mediunidade são paralelos, e se eqüivalem em intensidade. É por isso que mais nos interessamos aos considerados piores. Quanto mais antipática, mais sofrida, machucada pela vida, mais a pessoa desperta nosso amor cristão. Não estamos à procura dos bons. Bom, para nós, é o filho de Deus que já sentiu, na carne, os espinhos, e vem clamando por Justiça. Veja a perfeição do Sermão da Montanha: “Bem aventurados os que têm fome e sede de Justiça, porque serão saciados”!
- Mas, afinal, Neiva, o que foi feito de Emerenciana?
- Estou tratando dela, e está bem melhor. A toda hora ela me procura, como uma ave arrastando a asa partida, e eu a ajudo. Aliás, você mesmo tem ajudado muito ela, lembra-se? Quando ela não agüenta mais o assédio de seus amigos escravos, a gente faz um trabalho, e muitos deles se afastam. Dia a dia, ela está ganhando sua libertação. Em meio à sua miséria física atual, seu espírito está se erguendo, e o dia de sua emancipação está próximo. Aos poucos, ela vai transformando sua situação em uma rotina, em que a dor é muita, mas o sofrimento é bem menor.
A história de Emerenciana me trouxe profundas reflexões. Agora, começava a compreender e a aceitar a aparente desorganização do nosso grupo, quando comparado a outros grupos iniciáticos e religiosos. Agora sabia o que significava “culto da personalidade” em seu sentido mais profundo.
A personalidade organiza, seleciona e dá boa aparência, satisfaz a vaidade humana e o orgulho coletivo. Mas, infelizmente, é inócua e não traz novidades. Afinal de contas, eu deixara para trás grandes organizações religiosas e não-religiosas, e me juntara a esse bando de ciganos, sem saber porquê!
Agora, porém, eu sabia!...

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