O S S U I C I D A S
A notícia abalou todos na Casa Grande: dona Leonor, a simpática senhora que, há dois anos, freqüentava o Vale, havia se suicidado! O comentário dos dias que se seguiram girou em torno dos suicidas. Para mim, esse assunto se concluíra com a literatura de Chico Xavier. O suicida era um ser humano fracassado, tanto aqui como no mundo dos espíritos, e sua recuperação era tão difícil que até hospitais especializados existiam no espaço para assisti-los. A idéia mais comum em torno disso era a de um espírito que frustrara o plano de Deus, e que ninguém poderia destruir aquilo que Deus criou: a vida!
Passei a observar a Clarividente e reparei que, ao falar nisso, ela se emocionava, chegando, mesmo, a chorar. Mas vi, também, que sua emoção tinha um cunho diferente. Não tinha ela a mesma idéia de fracasso, que pairava em meu espírito, fracasso por não ter evitado o suicídio de uma pessoa que era assistida nossa. Aos poucos, fui entendendo que o problema do suicídio era mais complexo e que havia ângulos que ainda não haviam sido abordados na literatura espiritual. A senhora em questão resumia sua presença, no Vale, em contatos diretos com a Clarividente, e pouco sabíamos sobre ela. Aos poucos, consegui saber sua história e, a partir daí, minhas idéias sobre o suicídio se modificaram muito.
Tudo começou numa tarde quente de agosto de 1970. Neiva estava exausta pelos trabalhos ininterruptos. Quando duas senhoras desceram de luxuoso carro, na porta da Casa Grande, todo mundo se preveniu para evitar uma consulta forçada. Mas se sentaram na sala, uma das senhoras desandou a chorar convulsivamente, e daí, para conseguir a atenção de Neiva, foi um passo.
Sentaram-se as duas diante de Neiva. Embora não estivesse mediunizada, Neiva percebeu, de pronto, que o maior problema não era o da senhora que chorava, mas, sim, o da outra! A que chorava – Silvia – , tinha um descontrole emocional, e seus motivos eram fúteis, demonstrando falta de propósitos mais responsáveis. A outra, porém, embora não demonstrasse, estava em grande perigo.
Eram Leonor de Souza, 42 anos, e Silvia Castro, 36. Leonor pediu licença para fumar, e acendeu o cigarro numa longa piteira. Segurou a mão de Silvia, e pediu a Neiva que atendesse a ela em primeiro lugar. Embora Neiva não estivesse vendo coisa alguma que demandasse maior atenção, consentiu no pedido de Leonor. Pediu-lhe que fosse até a cozinha tomar um café, enquanto atendia Silvia. Logo que Leonor saiu, Silvia parou de chorar.
- Dona Neiva, – disse ela – a senhora tem um juramento para guardar segredo, não é verdade? Já me falaram disso.
- Sim. – respondeu Neiva – Jurei meus olhos a Nosso Senhor Jesus Cristo, para que os arranque no dia em que eu disser uma mentira ou induzir alguém ao erro, pela minha clarividência.
- Pois é, dona Neiva, a senhora tem que me ajudar em segredo. Meu marido acaba de ser transferido de Brasília para o Rio de Janeiro, e eu não suporto a idéia de abandonar Brasília. O motivo principal, pelo qual não quero sair daqui, é que amo este homem, e ele diz que me matará se eu sair de perto dele.
Dizendo isso, Silvia tirou uma fotografia da bolsa e estendeu-a a Neiva. Tomando a foto em suas mãos, Neiva quedou-se estarrecida: o retrato era do marido de Leonor, da amiga de Silvia! Sem dar a perceber que já identificara seu amante, Neiva prometeu-lhe segredo. Entretanto, sentia-se irritada com a futilidade aquela mulher. Alem de trazer um assunto escabroso – ser amante do marido da amiga –, vinha, ainda, com toda falta de respeito, pedir a manutenção daquela situação. Disfarçando suas próprias emoções, Neiva prometeu que iria fazer todo esforço para que ela não tivesse que sair de Brasília, e pediu-lhe que voltasse daí a alguns dias, num dia de consulta. Em seguida, mandou entrar Leonor, que foi logo dizendo:
- Dona Neiva, a senhora conseguiu um milagre fazendo Silvia para de chorar. Bem que ela me disse que a senhora era extraordinária!
Ainda agastada com o desplante de Silvia, Neiva olhou-a e respondeu:
- A senhora é quem devia estar chorando!...
- É verdade, dona Neiva. Estou desolada e não estou mais agüentando viver com o meu problema. Sou casada, meu marido é muito bom para mim, tenho filhos, mas estou amando desesperadamente outro homem! Mas, por favor, não me leve a mal. Amo, sei que sou correspondida, mas nada fiz de errado. Não me julgo no direito de prejudicar a quem quer que seja, minha família ou a dele, pois também é casado! A única coisa que acontece é conversarmos de vez em quando. Vim procurá-la para que me ajude a manter meu equilíbrio. Tanto ele como eu, queremos cumprir rigorosamente nossos deveres.
A atitude respeitosa de Leonor contrastou com o despudor de Silvia. E, apesar de não estar bem mediunizada, Neiva compreendeu que o caso era muito sério. Prometeu ajudá-la e lhe pediu que voltasse em dia de consulta.
Três dias depois, elas voltaram. Neiva já havia visto o quadro delas: Leonor tinha sido uma nobre da corte francesa, e havia se endividado com seu atual amor, que, naquele tempo, se chamava Antoine. Os laços que os uniam eram tão fortes que não lhes permitiam, agora, outra atitude senão a de um amor verdadeiro, sem manchas. Nisso se constituía a faixa cármica dos dois. Sentir aquela atração quase irresistível, e não poder, sem macular o amor, se unir. Só uma atitude altiva e honesta satisfaria aqueles espíritos. Com isso, o sofrimento era intenso, como um fogo perene a queimar-lhes os corações. Neiva admirou-se da intuição daqueles dois. Vivendo, como viviam, num meio social em que as irregularidades conjugais eram norma, e com todas as facilidades para a realização, os dois haviam tomado aquela atitude nobre.
Dia a dia, o velho francês ressarcia os desmandos do tempo em que se endividara com sua amada. Para agravar o sofrimento, a vida os colocara lado a lado, na intimidade de uma relação social próxima.
A intuição de Leonor, nas mãos de quem estava a manutenção daquela situação, foi confirmada pelo quadro espiritual. Se eles se entregassem à relação fácil, ao desvirtuamento daquele amor, ambos se destruiriam. Teriam que renunciar a qualquer realização pelo resto de seus dias na Terra!
O problema é que Leonor não estava mais conseguindo resistir. A idéia do suicídio a perseguia, constantemente, e, por isso, viera consultar Neiva. Pedia-lhe que a ajudasse a manter sua linha de procedimento, o que se estava tornando cada vez mais difícil.
Neiva se viu num dilema. A possibilidade de suicídio era muito grande. A realização ou o suicídio... Sexo ou morte!...
Desde esse dia, com grande habilidade e carinho, prometendo ajudá-la sempre e a recebendo a qualquer hora, do dia ou da noite, Neiva foi conduzindo pela mão aquela boa alma, sempre pedindo a Deus por ela. Às vezes, Neiva sentia-se tentada a desatar a rigidez daqueles laços morais. Afinal, amar não é pecado. Aliás, a palavra pecado não faz parte do dicionário espírita. O que existe é a responsabilidade do espírito pelos seus próprios atos.
Assim se passaram dois anos. Dia a dia, Neiva via aquele espírito perder as forças na luta. Para agravar a situação, o amado de Leonor fora convidado para ocupar um alto cargo em outro estado, e ela não pôde acompanhá-lo. Sua correspondência era apaixonada e eivada de desespero.
No dia de aniversário de Neiva – 30 de outubro –, Leonor lhe trouxe um presente: uma pequena rosa lavrada em prata e um vidro de fino perfume francês.
- Neiva, – disse ela – vou viajar, e antes que esses presentes se acabem, eu estarei longe deste mundo! Não quero que você me veja morta. Quero que se lembre de mim assim como sou agora...
Sentindo toda a tristeza do mundo, Neiva disse-lhe, apenas, poucas palavras, pois sabia que já era tarde e nada mais poderia fazer. Leonor partiu, e Neiva passou um dia terrível. Sem poder deixar de atender às múltiplas obrigações de aniversariante, nem conseguiu pensar direito no assunto. Sentiu-se fisicamente mal.
Quando conseguiu uma pequena folga, tomou a resolução de avisar à família de Leonor. Descobriu, então, que ninguém da família sabia de sua freqüência no Vale, a não ser um filho moço. Depois de longa espera, o rapaz veio procurar Neiva. Disse que ele era o único que sabia da assistência de Neiva à sua mãe, e estava muito agradecido por isso. Conhecia a desonestidade de seu pai, que sabia ter uma amante, e via o desespero que ele causava a sua mãe. Ele era a favor dela, mas ela estava muito frustrada, e a toda hora falava em se matar. Ele era estudante de Medicina, e nunca creditou que, realmente, sua mãe fosse se suicidar.
No dia 2 de novembro, o rapaz voltou a ver Neiva, para lhe dizer que a mãe tentara o suicídio e estava agonizante. No dia seguinte, voltou para comunicar que ela havia morrido.
Desde então o rapaz tornou-se amigo de Neiva, e a visitava constantemente.
Um ano depois, Neiva recebeu a notícia da morte do antigo nobre francês.
- É, Neiva, – disse eu – uma história quase banal de frustração, de desespero. Você acha que está certo? Afinal de contas, um suicídio é um atentado a Deus, é contra a Natureza, contra o instinto de conservação!
- Concordo com você, Mário, mas apenas em parte. Devemos ser cuidadosos em nosso julgamento. A maioria dos suicídios se deve a fatos de frustrações de personalidade, do ser transitório, da incapacidade para resistir às provas da vida. Mas, veja que nós, habitualmente, consideramos suicídio apenas quando a pessoa se mata violentamente. Mas não esqueça que o mesmo problema existe nos outros que, por frustração, não se matam fisicamente, mas se destroem moralmente e socialmente. E deve se considerar, ainda, aqueles que não se matam visivelmente, mas se matam aos poucos, como os alcoólatras, os toxicômanos, etc.
- Dessa maneira, Neiva, praticamente metade da humanidade é suicida?
- É, não é? Lembra-se da parábola dos talentos? Uma pessoa que enterra seus talentos não mata a sua oportunidade como ser encarnado? E aqueles que se deixam dominar pela preguiça, pela indolência, pelas idéias negativas? Esses não atentam contra Deus? Quero lembrar a você, Mário, da relatividade das coisas. É lógico que a autodestruição não pode ser boa. Mas a verdade é que ela é conceituada, na humanidade, em apenas um de seus aspectos. A humanidade é excessivamente complacente com os desmandos sexuais. Saiba você que, nos planos espirituais, é muito mais penosa a situação de um espírito que se atolou no sexo, que a de um suicida relativamente justificado. Você fala em natureza e instinto de conservação. Na realidade, temos um conceito do que chamamos natureza. Na verdade, a natureza estabelece formas de vivência e sobrevivência segundo um equilíbrio geral. Mas, pergunto eu, o que é natureza no Homem civilizado, moderno, habitante das grandes cidades? E o que é instinto de conservação nesse mesmo Homem? Repare que as idéias mudam muito quando as olhamos sob esse prisma. Há toda uma gama de valores novos, criados pelo progresso humano, que diferem muito do Homem in natura. E, se o espírito já conseguiu uma certa evolução, ele obtém um senso de responsabilidade que lhe permite saber se pode ou não viver de uma certa maneira.
- Mas, Neiva, – disse eu – afinal, o que é considerado suicídio nos planos espirituais? Está certo que devemos ser cuidadosos no julgar. Também está certo que consideremos suicidas todos que destroem suas possibilidades de vida, seja de uma forma ou de outra. Mas, diga-me, então: existem ou não existem suicidas?
- É lógico que existem, Mário. Todo ser humano que por egoísmo, preguiça ou qualquer outro motivo planeja sua morte ou destruição, esse é um suicida. O suicídio é quando a morte é premeditada. O que causa o suicídio é a falta de uma doutrina, da aceitação da existência do espírito, da vida fora da matéria. O suicida é o que tenta morrer em vez de tentar viver. Leonor, a meu ver, não se suicidou! Apenas, saiu da vida terrena!...
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