terça-feira, 23 de novembro de 2010

Sob os olhos da clarividente (11)




H I P P I E S

O ponto alto, no Templo do Amanhecer, era na sexta-feira. Aliás, sexta e domingo. Nestes dias havia maior concentração dos freqüentadores. Havíamos inaugurado o novo edifício, circular e iniciático, amplo e bonito, construído em quarenta e seis dias, com madeira velha e prodígios de engenharia caseira. Eu costumava dizer aos visitantes que, por pura coincidência, o Templo de Salomão, mencionado nos Evangelhos, havia sido construído em quarenta e seis anos.
O ritual era, realmente, bonito. A luz das velas e as tapeçarias vermelhas contrastavam com o branco dos uniformes dos médiuns, e suas vozes, cantando Mayante em coro, produziam um efeito balsâmico. O número de médiuns em trabalho era ideal. Atualmente, seu número cresceu tanto que o Templo ficou pequeno e, praticamente, desaparece sob a multidão. Mas o público, naqueles dias, já era grande, e eu gostava de ver aquele interesse das pessoas.
O lugar reservado ao público era menor, e muitos ficavam de pé, em silêncio. Gente de todo tipo e de todas as categorias. O Evangelho era pregado de forma original e didática, fora qualquer estilo clássico de sermões. Templo, médiuns e hinos faziam com o público a prática de um Evangelho vivo e atuante.
Naquela sexta-feira o trabalho se prolongara até quase meia-noite, devido ao enorme número de pessoas para tomar passes. Atento aos menores detalhes do atendimento, ansioso por que todos saíssemos satisfeitos, notei um movimento desusado na porta. Pouco antes, ouvira o ruído fora do comum de motores no pátio. Mediunizado, eu registrava os fatos com maior acuidade, e fiquei alerta. Quando dei fé, os bancos, pouco antes ocupados pelo público que tomava os passes, estavam lotados de novo. Notei uma mudança no ambiente e um silêncio de expectativa.
Como o lugar reservado ao público era mal iluminado, não vi bem o que acontecera. Nisso, chega um Doutrinador, o responsável pelo bem-estar do público, com ar assustado, e me diz, apreensivo:
- Mário, um bando de hippies! Lá estão eles, sentados. Cuidado!
De pronto, fiquei tenso. Imagens saltaram no meu consciente. Depredações, ironias e irreverências! De repente, me senti ultrajado no meu zelo templário e, como um “Dom Camilo” caboclo, investi contra o “Popone” e seu exército. (Dom Camilo e Popone foram protagonistas de diversas histórias, famosas naquela época, passadas na Itália, onde o padre e o líder comunista se enfrentavam, cada um mostrando sua ótica dos acontecimentos – TRT Tumarã)
Os hippies me olharam em silêncio.
Era um grupo de rapazes e moças. Calças Lee e cabelos longos. Alguns tinham barbas compridas e óculos de aro metálico. Felizmente, nenhum mascava chicletes.
Dominei meu ofegar e consegui perguntar o que desejavam. A resposta não demorou, e veio com simplicidade:
- Nada! Apenas queremos saber o que é isto.
Engoli o Dom Camilo junto com Popone, e fiquei ali, olhando aqueles rostos jovens, pouco distintos na penumbra. Mas, minha precoce indignação azedara minha voz.
- Isto é um templo espírita, – respondi – e estamos em trabalho!
- É, a gente ouviu falar deste Vale. Viemos ver qual é a transa!
A resposta viera de um único deles. Os outros se mantinham em silêncio. E o silêncio prosseguia. Percebi que havia perdido uma parada, antes mesmo que ela acontecesse.... Subitamente, senti uma aragem suave descer em mim. Tomei novo zelo. Senti certa ternura. Suavizei minha voz.
- Sejam benvindos! A casa é de vocês – disse eu.
- Como é que funciona isto? – uma voz feminina perguntou.
Tomei posição e comecei a lhes explicar, como fazia com os visitantes comuns. Subitamente, me alertei: começaram a surgir perguntas que, pelo teor, demonstravam familiaridade com os assuntos iniciáticos. Perguntas sérias. Esqueci, por momentos, o público que, sentindo algo diferente, começava a se retirar discretamente. Alguns ficaram na entrada, curiosos, mas alertas, prontos para uma eventual saída repentina. E o diálogo mais vivo em que, até então, eu tomara parte, aconteceu. Entusiasmei-me com o assunto. Orgulhei-me da nossa Doutrina, da ampla liberdade que ela me proporcionava. Liberdade na linguagem e na abordagem dos assuntos.
Mentalmente, agradeci a Deus por não estar cercado por preconceitos religiosos ou morais. Quinze ou vinte minutos depois, lembrei-me de que ainda não havia encerrado os trabalhos. Pedi licença, e eles pediram para tomar passes. Concordei, e o espetáculo ficou gravado na minha mente.
Aqueles rapazes e moças, com seus trajes coloridos e seus cabelos longos, tomavam seus passes com todo respeito e simplicidade.
Na primeira oportunidade, dirigi-me a Neiva, que conversava com algumas pessoas.
- Que é isso, Mário? – perguntou ela.
- Hippies – respondi.
E ficamos olhando aquelas figuras bizarras que, diligentemente, tomavam seus passes. Alguns deles se aproximaram de nós e puxaram conversa com Neiva.
Encerrei os trabalhos, e os médiuns cantaram “Noite de Paz” com a tranqüilidade de tarefa concluída. Aos poucos, os médiuns foram saindo. Olhei para onde deixara Neiva e a vi num banquinho, rodeada pelos hippies, sentados no chão e nos banquinhos dos Pretos Velhos.
Preocupado com o cansaço de Neiva, aproximei-me e vi que, entre ela e os jovens, se estabelecera um animado diálogo. Prestei atenção na conversa, e várias vezes minha língua coçou, com vontade de responder às perguntas feitas. Percebi, porém, que as respostas de Neiva tinham um cunho diferente do seu arrazoado habitual, e resolvi conter-me. Aos poucos, fui percebendo que, entre ela e o grupo, formara-se um élan, do qual me sentia excluído. Aliás, a humanidade toda estava excluída daquela conversa.
O frio da madrugada fez com que me encolhesse dentro do uniforme de fazenda leve. Preocupei-me com Neiva e sua tosse crônica. Para minha surpresa, vi que um dos hippies colocara sua jaqueta sobre os ombros dela, e que ela aceitara o gesto de carinho com toda naturalidade.
Nossa Clarividente, minha mentora terrena, se transformara numa hippie! Essa cena iria se repetir ainda muitas vezes, no Templo, entre os eucaliptos ou em qualquer outra parte do Vale onde se encontrassem. Os hippies, praticamente, invadiram o Vale do Amanhecer. Mas, de hippies, só tinham o apelido. É verdade que “puxavam uma fumacinha” e tinham alguns hábitos insólitos. Sua linguagem, de pronúncia carioca, era cheia de expressões peculiares, tais como “transa”, “que barato”, “tô na minha”, “legal”, “podes crer”, “pintou”, etc.
Aos poucos essa linguagem foi sendo assimilada por todos do Vale. Com a mesma naturalidade com que haviam chegado ao Templo, sentaram-se à mesa, na Casa Grande, e alguns dormiam em sacos de dormir, embaixo das árvores. Os carros iam e vinham, e, não raro, a gente se irritava com o pipocar de motocicletas ameaçadoras.
Cada dia chegavam novos “caras”, e, no meu rancho-escritório, o dia inteiro se discutiam Herman Hesse, Espiritismo, Induísmo, Tibete, ritos estranhos e a situação da juventude no mundo moderno.
Surpreendia-me o conhecimento variado de que eram portadores. Alguns já haviam concluído a Universidade, e outros eram estudantes. De modo geral, todos estavam em busca de algo místico, de soluções transcendentais e de uma explicação para os fatos da vida. Criticavam acerbamente a moral e comportamento das classes sociais, mas não demonstravam rancor. Suas expressões favoritas eram “paz”, “amor” e congêneres. Riam muito e gostavam de participar das rodas de violão, uma das tradições do Vale.
Aos poucos, foi nascendo um sentimento de amor alegre entre eles e nós. Jamais provocaram qualquer situação desagradável ou de desrespeito. Nossas meninas e meninos conviviam com eles, e demonstravam carinho especial pelos pequeninos do orfanato, que os rodeavam sem cerimônia. Constantemente, suas motos volteavam, ameaçadoras, com dois ou três meninos precariamente equilibrados nas garupas.
A notícia da presença deles no Vale se espalhou rapidamente. Diariamente, éramos visitados por agentes de polícia e de órgãos de segurança. O problema foi tomando um aspecto tão sério, que obrigou Neiva a lançar mão das suas relações com as autoridades. Estas, tão pronto se inteiraram da verdadeira razão da presença deles no Vale, passaram a dar cobertura e incentivar nosso trabalho junto àqueles jovens.
Pessoas, entretanto, criticavam nossa atitude. Afinal, o Vale era um templo espírita, um lugar de rezar – assim diziam – e esses vadios estavam tomando o tempo e o lugar de pessoas necessitadas. Tais críticas, porém, eram recebidas com bom humor. Como é bom a gente ser independente e consciente da própria missão!
Aos poucos, as reclamações acabaram e o povo se acostumou com eles. Rapidamente, eles assimilaram os princípios que orientavam nossa vida. Adotaram o Mediunismo e aprenderam suas técnicas. Com autorização especial de Pai Seta Branca, passaram a fazer parte dos trabalhos do Templo. Em lugar do uniforme, usavam somente a faixa característica de nossa Corrente.
A princípio, a gente custava a aceitar. Rapazes e moças, com colares, cabelos longos, barbas compridas, roupas coloridas e justas, misturando-se com os médiuns, incorporando, doutrinando, lidando com obsidiados e trabalhos de cura. Aos poucos, porém, eles foram conquistando a confiança dos Doutrinadores, a ponto de serem chamados para o atendimento de casos mais difíceis. Tinham capacidade mediúnica além do normal e trabalhavam com prazer.
Aprendemos a amar aqueles jovens. As moças, principalmente, fazendo seus artesanatos, convivendo, sem constrangimento, na nossa pobreza, revelavam a finura dos padrões em que haviam sido criadas.
Aos poucos, a finalidade da vinda deles foi-se evidenciando. Haviam terminado a busca. Pouco a pouco, foram abandonando os hábitos de que eram portadores. Alguns se encaminharam de novo às suas escolas, outros entraram em contato com os pais, que há muito não viam. Para nossa surpresa, começaram a trazer para o Vale seus genitores. Chegamos a organizar um trabalho especial de desenvolvimento mediúnico para atender a seus pais. Reconciliações dramáticas tinham lugar, de vez em quando. Alguns pais vieram nos procurar, pensando estarem seus filhos de integrando em algum “Woodstock” candango. Outros haviam pensado que o Vale era um lugar onde se traficavam tóxicos e similares...
Por fim, chegou o dia em que a missão deles estava delineada. O grupo, já então muito reduzido, iria fundar seu próprio “Vale”, com seu ritual adequado, e se dedicaria ao trabalho espiritual de socorro aos jovens e intelectuais desajustados. Num dia de Sol forte, fizeram sua iniciação. Juraram, solenemente, jamais ingerir álcool ou qualquer substância tóxica, e adotaram o Mediunismo como base de seu trabalho. Seu lugar de trabalho chama-se “Vale do Sol e da Esperança”.

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