sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sob os olhos da clarividente (5)




D A N I E L

O Sol entrava pelas frestas das tábuas da Casa Grande, e eu pensava comigo: quando é que Neiva vai mandar consertar esses buracos? Nisso, ela entrou na sala, falando em tom de raiva, e pensei: Pelo jeito, no mínimo, matou um dos meninos...

A Casa Grande era um milagre de arquitetura e decoração. Num lote padrão de Taguatinga, felizmente um lote de esquina, era um barraco alongado e esticado pelos quatro pontos cardeais. Telhas de toda espécie, madeiras que já haviam conhecido outras situações arquitetônicas, e outros materiais. Nela viviam, exatamente, sessenta e três pessoas, incluindo o cronista. As idades variavam de um a sessenta anos, de ambos os sexos.

Uma diferença na altura do assoalho e um tabique delimitavam o orfanato e a casa de Neiva. Usava-se a palavra orfanato, mas era proibido usar-se a palavra órfão, a não ser para o Zé Órfão. Ele havia chegado junto com outros meninos e, no meio deles, havia dois chamados José. Um deles tinha perdido os pais e a turma se penalizou porque ele era órfão. Ligar a palavra Zé com órfão foi a coisa mais fácil, e daí a tradição de ser um orfanato que só tem um órfão...

Tão pronto me viu, Neiva passou do ar raivoso para o seu sorriso benevolente. Sua disciplina era assim. Gritava como se estivesse possessa, mas só exteriormente. O amor que dedicava àqueles meninos era demasiado e, para disfarçar, fazia-se, como dizia ela, de mauzona.

Sentamo-nos na sala de visitas, a única que tinha um relativo espaço livre, e onde se realizavam os bailes de sábado.

- Mário, – disse ela – não sei o que fazer com tanto menino. Não tem mais onde por. Hoje de manhã, uma mulher queria deixar os seis filhos dela de uma vez. É lógico que recusei!

- Mas, – objetei – não foi essa que você mandou Gertrudes atrás agora há pouco?

Ela disfarçou e passou a outro assunto... Assim era a Casa Grande, tão grande quanto o coração de Neiva. Sempre havia lugar para mais um.
Nisso, pára um jipe à porta, e dele desce um rapaz empoeirado, acompanhado por um menino de uns sete ou oito anos.

- A senhora é dona Neiva? – foi logo falando.

- Sim! – respondeu ela – O que o senhor deseja?

- Sei que a senhora tem um orfanato, e queria ver se ficava com esse menino.

- Que menino? – perguntou ela, e foi logo acrescentando, diante do meu olhar de mofa: – Não, não posso! Não tenho mais onde pôr. O senhor me desculpe!
Realmente, na sala, só estávamos nós três. Cheguei a desconfiar que me havia enganado, e que o homem descera só, sem nenhum menino com ele.

Nisso, ouviu-se um grito lancinante de criança, e Neiva saiu correndo para o orfanato. Daí a pouco, voltou ela, trazendo um menino pelo braço. Mirrado, calcinha rasgada no traseiro, nariz meio achatado, olhos negros e fundos, forçava para se livrar da mão de Neiva.

- É este o menino de quem o senhor está falando? Muito obrigada, pode ficar com ele! Quem vai poder com um bichinho desses? Já quase quebrou a cabeça de Manezinho, lá dentro! Não, muito obrigada! Pode levar seu diabinho...
Neiva largou o menino, que solto, começou a futucar o velho aparelho de televisão existente na sala. Meu sangue começou a subir à cabeça, tal o medo de ter que consertar, pela quinta vez, aquele heróico aparelho do tempo pioneiro da televisão.

O rapaz começou a contar sua história:

- Dona Neiva, a senhora vai-me perdoar por insistir. Sou pobre, tenho um pequeno sítio em Cavalcante, no interior de Goiás, que pertence à minha família, há muitos anos.  A terra é pobre e mal dá pra gente viver. Tinha um pessoal que morava lá há algum tempo, e eles tinham muitos filhos. O pai da família deu pra beber cachaça e, um dia, acabou morrendo na ponta de uma faca. As crianças ainda eram pequenas, e a mão deles ficou meio doida com isso. Mas iam vivendo, mesmo assim, ao Deus-dará, com as crianças soltas no sítio. Um dia, deu um acesso de loucura na mãe, e ela passou a mão num machado e matou as três meninas. Daniel, aqui, que era o menorzinho, com uns quatro anos de idade, ia ser o último a morrer, quando acudiram. Levaram a mulher para um hospício, e passei a criar Daniel junto com meus filhos. O problema, dona Neiva, é que, agora, não estou dando conta de ficar com ele. 

Já fui ao Juizado de Menores, mas eles não têm onde colocá-lo. Lá me disseram que a senhora iria aceitá-lo, e vim lhe pedir essa caridade. Daniel está acabando com o sítio. Já matou galinhas, porcos, e destrói tudo o que encontra. Briga com todo mundo, some no mato, e fica dias desaparecido. Canso de receber reclamações dos vizinhos e tenho medo de que, um dia desses, aconteça algo pior. Por favor, dona Neiva, me ajude!

Nisso, Gertrudes veio chamar Neiva para o interior da casa, e ela nos deixou. 

Nessa altura, Daniel já tinha conseguido tirar a tampa traseira do televisor, mas, para meu alívio, se desinteressou do aparelho e passou a desfolhar uma velha avenca de um vaso.

Impressionado com a história e receoso de que Neiva resolvesse ficar com o menino, fui procurá-la.

- Você está doido, Mário? É lógico que não vou aceitar esse menino! Onde é que vou pô-lo? E você acha que seria louca de colocar esse menino junto com os outros?

Ouvimos o ruído do motor do jipe, que se afastava. Respirei aliviado. Graças a Deus o homem desistira de insistir. Encaminhei-me para a sala e a primeira coisa que vi foi o televisor virado em cima da mesa, e Daniel mexendo em seu interior, com os dedinhos gretados de terra preta. O rapaz se fora e o deixara para trás!...

Passaram-se cinco anos. A Casa Grande é, hoje, apenas uma recordação, um barraco alugado em Taguatinga. Atualmente, existe um Vale do Amanhecer, e um enorme dormitório chamado orfanatão. Nele dormem uns 120 meninos, e outros tantos dormem no quartel, ou na nova Casa Grande. Ao todo, são mais de duzentos, fora os em trânsito...

José Ferreira de Brito, o seu Brito, tem a mania de abrigar meninos. Como Neiva tem a mesma mania, os dois se entendem muito bem. Todos os dias, ele chega para Neiva e diz:

- Neiva, chega de por meninos no orfanato. Eu não dou mais conta!

- Mas, Brito, – diz ela com calma – não foi você quem mandou aquela mulher aqui, hoje cedo, com aqueles três pretinhos?

- Eu? Não mandei ninguém trazer crianças pra cá!...

- Mas Brito, – diz Neiva, calma – ela trouxe até um bilhete seu!...

E assim a discussão continua, há uns quatro anos, mais ou menos, e chegamos a duzentos e tantos meninos, de ambos os sexos, de um a vinte anos!...

Oito horas da noite. No Vale do Amanhecer, gente para todo lado, médiuns de retiro com seus uniformes queridos. Gente que conversa animadamente, em todos os cantos da complexa Casa Grande. Rádios e televisores pipocam por toda parte, numa cacofonia impressionante.

Seu Brito pára o carro no pátio e desce, apalpando, com carinho, o cinto apertado de um homem que atravessa a casa dos quarenta.
Daniel se aproxima dele, e os dois se cumprimentam afetuosamente. Entram para a sala de visitas. Um homem grande e um homenzinho. Daniel tem, hoje, uns doze anos. A mesma voz um pouco agarrada na garganta, o mesmo olhar inquieto, verificando tudo que o cerca, a roupa estriada de poeira do Vale. Sentam-se ambos.

- Seu Brito – diz Daniel – a professora hoje disse que já posso ir para o ginásio. Sabe, ganhei um prêmio!

Brito afaga-lhe a cabecinha despenteada. Um visitante, sentado na sala, olha para ambos. Brito explica:

-Daniel, aqui, é meu secretário!...

Nenhum comentário:

Postar um comentário